As vidas sucessivas – Objeções e críticas
XVI
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Já respondemos às objeções que, logo à primeira vista, o esquecimento das vidas anteriores traz ao pensamento; resta-nos refutar outras de caráter filosófico ou religioso, que os representantes das igrejas opõem, de boamente, à doutrina das reencarnações.
Em primeiro lugar, dizem, essa doutrina é insuficiente sob o ponto de vista moral. Abrindo ao homem tão vastas perspectivas para o futuro, deixando-lhe a possibilidade de reparar tudo nas suas existências vindouras, acoroçoa-o ao vício e à indolência; não oferece estímulo de bastante poder e eficácia para a prática do bem, e, por todas essas razões, é menos enérgico que o temor de um castigo eterno depois da morte.
A teoria das penas eternas não é, como vimos, * no próprio pensamento da Igreja, mais do que um espantalho destinado a amedrontar os maus; mas a ameaça do inferno, o temor dos suplícios, eficaz nos tempos de fé cega, já hoje não reprime a ninguém. No fundo, é uma impiedade para com Deus, de quem se faz um ser cruel, que castiga sem necessidade e sem o objetivo de corrigir.
* - Cristianismo e Espiritismo, cap. X.
Em seu lugar, a doutrina das reencarnações mostra-nos a verdadeira lei dos nossos destinos e, com ela, a realização do progresso e da justiça no universo; fazendo-nos conhecer as causas anteriores dos nossos males, põe termo à concepção iníqua do pecado original, segundo a qual toda a descendência de Adão, isto é, a humanidade inteira, sofreria o castigo das fraquezas do primeiro homem. É por isso que sua influência moral será mais profunda que a das fábulas infantis do inferno e do paraíso; oporá freio às paixões, mostrando-nos as consequências dos nossos atos, recaindo sobre a nossa vida presente e as nossas vidas futuras, semeando nelas germens de dor ou de felicidade. Ensinando-nos que a alma é tanto mais desgraçada quanto mais imperfeita e culpada, estimulará os nossos esforços para o bem. É verdade que é inflexível essa doutrina; mas pelo menos proporciona o castigo à culpa e, depois da reparação, fala-nos de reabilitação e esperança. Ao passo que o crente ortodoxo, imbuído da idéia de que a confissão e a absolvição lhe apagam os pecados, afaga uma esperança vã e prepara para si próprio decepções na outra vida, o homem cuja mente foi iluminada pela nova luz aprende a retificar o seu proceder, a precatar-se, a preparar com cuidado o futuro.
Há outra objeção que consiste em dizer: Se estamos convencidos de que os nossos males são merecidos, de que são consequência da lei de justiça, tal crença terá por efeito extinguir em nós toda a piedade, toda a compaixão pelos sofrimentos alheios; sentir-nos-emos menos inclinados a socorrer, a consolar nossos semelhantes; deixaremos livre curso às suas provações, pois que devem ser para eles uma expiação necessária e um meio de adiantamento. * Essa objeção é especiosa; emana de fonte interessada.
* - Foi, igualmente, o que Taine exprimiu nos seus Nouveaux Essais de Critique et d'Histoire por estes termos:
“Se se acreditar que os desgraçados só o são em castigo das suas faltas, de que servirão, nesse caso, a caridade e a fraternidade? Poder-se-á ter compaixão de um doente que está sofrendo e que desespera; mas, não haverá propensão para ter-se menos pena de um culpado? Ainda mais, a comiseração deixa de ter razão de ser, seria uma falta, em virtude de ser a justiça de Deus afirmando-se e exercendo-se nos sofrimentos dos homens. Com que direito havíamos, pois, de contrariar e pôr obstáculos à justiça divina? A própria escravidão é legitima e quanto mais castigados, mais humilhados são os homens pelo destino, tanto mais se deve crer na sua decadência e punição.”
É de admirar que um espírito tão penetrante como o de H. Taine se tenha colocado em ponto de vista tão acanhado para enfrentar tão grave problema.
Consideremos, primeiramente, a questão sob o ponto de vista social, examiná-la-emos, depois, no sentido individual. O moderno Espiritualismo ensina-nos que os homens são solidários uns com os outros, unidos por uma sorte comum. As imperfeições sociais, de que todos mais ou menos sofremos, são o resultado de nossos erros coletivos no passado. Cada um de nós traz a sua parte de responsabilidade e tem o dever de trabalhar para o melhoramento do destino geral.
A educação das almas humanas obriga-as a ocupar situações diversas. Todas têm de passar alternadamente pela prova da riqueza e pela da pobreza, do infortúnio, da doença, da dor.
O egoísta fica alheio a todas as misérias deste mundo que não o atingem e diz: “Depois de mim, o dilúvio”. Crê que a morte o subtrai à ação das leis terrestres e às convulsões da sociedade. Com a reencarnação, muda o ponto de vista. Será forçoso voltar e sofrer os males que contávamos legar aos outros. Todas as paixões, todas as iniquidades que tivermos tolerado, animado, sustentado, seja por fraqueza, seja por interesse, voltar-se-ão contra nós. O meio social em prol do qual nada tivermos feito constranger-nos-á com toda a força dos seus braços. Quem esmagou, quem explorou os outros será, por sua vez, explorado, esmagado; quem semeou a divisão, o ódio, sofrer-lhes-á os efeitos: o orgulhoso será desprezado e o espoliador espoliado; aquele que fez sofrer sofrerá. Se quiserdes assentar em bases firmes o vosso próprio futuro, trabalhai, pois, desde já, em aperfeiçoar, em melhorar o meio em que haveis de renascer; pensai na vossa própria reforma. Eis o que é indispensável fazer-se para que as misérias coletivas sejam vencidas pelo esforço de todos. Aquele que, podendo ajudar os seus semelhantes, deixa de fazê-lo, falta à lei de solidariedade.
Quanto aos males individuais, diremos, colocando-nos em outro ponto de vista: “Não somos juízes das medidas exatas onde começa e onde acaba a expiação.” Sabemos, porventura, quais são os casos em que há expiação? Muitas almas, sem serem culpadas, mas ávidas de progresso, pedem uma vida de provas para mais rapidamente efetuarem sua evolução. O auxílio que devemos a estas almas pode ser uma das condições de seu destino, como do nosso, e é possível que estejamos adrede colocados em seu caminho para aliviá-las, esclarecê-las, confortá-las. Sempre que se nos ofereça o mínimo ensejo de nos tornarmos úteis e prestativos e deixamos de o ser, há de nossa parte mau cálculo, porquanto todo bem e todo malfeitos remontam à sua origem com os seus efeitos.
“Fora da caridade não há salvação”, disse Allan Kardec. Tal é o preceito por excelência da moral espírita. O sofrimento, onde quer que se manifeste, deve encontrar corações compassivos prontos a socorrer e consolar. A caridade é a mais bela das virtudes; só ela dá acesso aos mundos felizes.
Muitas pessoas para quem a vida foi rude e difícil aterram-se com a perspectiva de a renovarem indefinidamente. Essa longa e penosa ascensão através dos tempos e dos mundos enche de pavor aqueles que, tomados de fadiga, contam com um descanso imediato e uma felicidade sem fim. É certo que se precisa ter têmpera n’alma para contemplar sem vertigem essas perspectivas imensas. A concepção católica era mais sedutora para as almas tímidas, para os espíritos indolentes, que, segundo ela, poucos esforços tinham a fazer para alcançar a salvação. A visão do destino é formidável. Só espíritos vigorosos podem considerá-lo sem fraquejar, encontrar na noção do destino o incentivo necessário, a compensação dos pequenos hábitos confessionais, a calma e a serenidade do pensamento.
Uma felicidade, que é preciso conquistar à custa de tantos esforços, amedronta mais do que atrai as almas humanas, fracas ainda em grande parte e inconscientes do seu magnífico futuro. A verdade, porém, está acima de tudo! Aqui, portanto, não estão em jogo as nossas conveniências pessoais. A lei, agrade ou não, é lei! É dever nosso subordinar-lhe os nossos desígnios e atos e não cabe a ela dobrar-se às nossas exigências.
A morte não pode transformar um Espírito inferior em Espírito elevado. Somos, nesta como na outra vida, o que nós fizemos, intelectual e moralmente. Isso é demonstrado por todas as manifestações espíritas. Há quem diga, entretanto, que só as almas perfeitas penetrarão nos reinos celestes e, por outro lado, restringem os meios de aperfeiçoamento ao círculo de uma vida efêmera. Pode alguém vencer suas paixões, modificar seu caráter durante uma única existência? Se alguns o têm conseguido, que pensar da multidão dos seres ignorantes e viciosos que povoam nosso planeta? É admissível que sua evolução se restrinja a essa curta passagem pela Terra? Onde encontrarão também, os que se tornaram culpados de grandes crimes, as condições necessárias à reparação? Se não fosse nas reencarnações ulteriores, tornaríamos forçosamente a cair no labirinto do inferno; mas um inferno perpétuo é tão impossível como um paraíso eterno, porque não há ato, por mais louvável, nem crime, por mais horrendo, que produza uma eternidade de recompensas ou de castigos!
Basta considerar a obra da Natureza, desde a origem dos tempos, para verificar-se por toda parte a lenta e tranquila evolução dos seres e das coisas, que tanto se ajusta ao Poder Eterno e que todas as vozes do universo proclamam. A alma humana não escapa a essa regra soberana. Ela é a síntese, o remate desse esforço prodigioso, o último anel da cadeia que se desenrola desde as mais profundas camadas da vida e cobre o globo inteiro. Não é no homem que se resume toda a evolução dos reinos inferiores e que aparece fulgente o princípio sagrado da perfectibilidade? Não é esse princípio a sua própria essência e como que o selo divino impresso em sua natureza? E, se assim for, como admitir que a inteligência humana possa estar colocada fora das leis imponentes, emanadas da Causa Primária das Inteligências?
A onda de vida que rola suas águas através das idades para chegar ao ser humano e que, em seu curso, é dirigida pela lei grandiosa da evolução, pode ir terminar na imobilidade? Por toda a parte – na Natureza e na História – está escrito o princípio do progresso. Todo movimento que ele imprime às forças em ação no nosso mundo vai ter ao homem. Pode, pois, pretender-se que a parte essencial do homem, o seu “eu”, a sua consciência, escape à lei de continuidade e progressão? Não! A lógica, sem falar dos fatos, demonstra que a nossa existência não pode ser única. O drama da vida não pode constar de um só ato; é-lhe indispensável uma continuação, um prolongamento, pelos quais se explicam e esclarecem as incoerências aparentes e as obscuridades do presente; requer um encadeamento de existências solidárias umas das outras, realçando o plano e a economia que presidem aos destinos dos seres humanos.
Resultará de aí estarmos condenados a um labor ímprobo e incessante? A lei de ascensão recua indefinidamente o período de paz e descanso? De modo nenhum. À saída de cada vida terrestre a alma colhe o fruto das experiências adquiridas; aplica as suas forças e faculdades ao exame da vida íntima e subjetiva; procede ao inventário da sua obra terrestre, assimila as partes úteis e rejeita o elemento estéril. É a primeira ocupação na outra vida, o trabalho por excelência de recapitulação e análise. O recolhimento entre os períodos de atividade terrestre é necessário e todo ser que segue a vida normal dele recebe, a seu turno, os benefícios.
Dizemos recolhimento porque, na realidade, o Espírito, no estado livre, ignora o descanso; a atividade é sua própria natureza. Essa atividade não é visível no sono? Só os órgãos materiais de transmissão sentem fadiga e pouco a pouco periclitam. Na vida do espaço são desconhecidos esses obstáculos; o Espírito pode consagrar-se, sem incômodo e sem coação, até à hora da reencarnação, às missões que lhe cabem.
O regresso à vida terrestre é para ele como que um rejuvenescimento. Em cada renascimento a alma reconstitui para si uma espécie de virgindade. O esquecimento do passado, qual Letes benfazejo e reparador, torna a fazer dela um ser novo, que repete a ascensão vital com mais ardor. Cada vida realiza um progresso, cada progresso aumenta o poder da alma e aproxima-a do estado de plenitude. Essa lei mostra-nos a vida eterna em sua amplitude. Todos nós temos um ideal a realizar – a beleza suprema e a suprema felicidade. Encaminhamo-nos para esse ideal com mais ou menos rapidez segundo a impulsão dos nossos ímpetos e a intensidade dos nossos desejos. Não existe nenhuma predestinação; nossa vontade e nossa consciência, reflexo vivo da norma universal, são nossos árbitros. Cada existência humana estabelece as condições do que se há de seguir. Seu conjunto constitui a plenitude do destino, isto é, a comunhão com o Infinito.
Perguntam-nos muitas vezes: “Como podem a expiação e o resgate das faltas passadas ser meritórios e fecundos para o Espírito reencarnado, se este, esquecido e inconsciente das causas que o oprimem, ignora atualmente o fim e a razão de ser de suas provações?”
Vimos que o sofrimento não é forçosamente uma expiação. Toda a Natureza sofre; tudo o que vive, a planta, o animal e o homem, estão sujeitos à dor. O sofrimento é principalmente um meio de evolução, de educação; mas, no caso em questão, é preciso lembrar que se deve estabelecer distinção entre a inconsciência atual e a consciência virtual do destino no Espírito reencarnado.
Quando o Espírito compreende, à luz intensa do Além, que lhe é absolutamente necessária uma vida de provações para apagar os lamentáveis resultados de suas existências anteriores, esse mesmo Espírito, num movimento de plena inteligência e plena liberdade, escolhe ou aceita espontaneamente a reencarnação futura com todas as consequências que ela acarreta, aí compreendido o esquecimento do passado, que se segue ao ato da reencarnação. Essa vista inicial, clara e completa, do seu destino no momento preciso em que o Espírito aceita o renascimento, basta amplamente para estabelecer a consciência, a responsabilidade e o mérito dessa nova vida. Dela o conserva neste mundo a intuição velada, o instinto adormecido, que a menor reminiscência, o menor sonho, bastam para acordar e fazer reviver.
É por esse laço invisível, mas real e possante, que a vida atual se liga à vida anterior do mesmo ser e constitui a unidade moral e a lógica implacável de seu destino. Se, já o demonstramos, não nos lembramos do passado, é porque, as mais das vezes, nada fazemos para despertar as recordações adormecidas; mas a ordem das coisas não deixa por isso de subsistir, nenhum elo da cadeia magnética do destino se obliterou e, ainda menos, se quebrou.
O homem de idade madura não se lembra do que fez na meninice. Deixa por isso de ser a criancinha de outrora e de lhe realizar as promessas? O grande artista que, ao entardecer de um dia de labor, cede ao cansaço e adormece, não retém durante o sono o plano virtual, a visão íntima da obra que vai prosseguir, que vai continuar, assim que acordar? Acontece o mesmo com o nosso destino, que é uma lide constante entrecortada, muitas vezes, em seu curso, por sonos, que são, na realidade, atividades de formas diferentes, abrilhantadas por sonhos de luz e beleza!
A vida do homem é um drama lógico e harmônico, cujas cenas e decorações mudam, variam ao infinito, mas não se apartam nunca, um só instante, da unidade do objetivo nem da harmonia do conjunto. Só quando voltarmos para o mundo invisível é que compreenderemos o valor de cada cena, o encadeamento dos atos, a incomparável harmonia do todo em suas ligações com a vida e a unidade universais.
Sigamos, pois, com fé e confiança, a linha traçada pela Mão Infalível. Dirijamo-nos aos nossos fins, como os rios se dirigem para o mar – fecundando a terra e refletindo o céu.
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Há mais duas objeções que reclamam a nossa atenção: “Se a teoria da reencarnação fosse verdadeira – diz Jacques Brieu no Moniteur des Études Psychiques – o progresso moral deveria ser sensível desde o começo dos tempos históricos. Ora, sucede coisa muito diferente; os homens de hoje são tão egoístas, tão violentos, tão cruéis e tão ferozes como o eram há 2.000 anos.” *
* - Número de 5 de maio de 1901, pág. 298.
É uma apreciação exagerada. Ainda que a consideremos como exata, nada prova contra a reencarnação. Sabemos que os melhores homens, aqueles que depois de uma série de existências alcançaram certo grau de perfeição, prosseguem a sua evolução em mundos mais adiantados e só voltam à Terra, excepcionalmente, na qualidade de missionários; por outro lado, contingentes de Espíritos, vindos de planos inferiores, cotidianamente se vão juntando à população do globo. Como estranhar, nessas condições, que o nível moral se eleve muito pouco?
Segunda objeção: a doutrina das vidas sucessivas, espalhando-se na humanidade, produz abusos inevitáveis. Não sucede o mesmo com todas as coisas no seio de um mundo pouco adiantado, cuja tendência é corromper, desnaturar os ensinamentos mais sublimes, acomodá-los a seus gostos, paixões e vis interesses?
O orgulho humano pode encontrar aí fartas satisfações e, com a ajuda dos Espíritos zombeteiros ou da sugestão automática, assiste-se, por vezes, às revelações mais burlescas. Assim como muita gente tem a pretensão de descender de ilustre estirpe, assim também, entre os teósofos e os espíritas, encontra-se muito crente vaidoso convencido de ter sido tal ou qual personagem célebre do passado.
“Em nossos dias – diz Myers – * Anna Kingsford e Edward Maitland pretendiam ser nada menos do que a Virgem Maria e São João Batista.”
* - F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 331.
Pelo que pessoalmente me diz respeito, conheço por esse mundo afora umas dez pessoas que afirmam ter sido Joana d'Arc. Seria um nunca acabar se fosse preciso enumerar todos os casos desse gênero. Não obstante, é possível encontrar nesse terreno alguma parcela de verdade. Como havemos, porém, de joeirá-la dos erros? Em tais matérias, precisamos entregar-nos a uma análise atenta e passar tais revelações pelo crivo de uma crítica rigorosa; investigar primeiramente se a nossa individualidade apresenta traços salientes da pessoa designada; reclamar depois, da parte dos Espíritos reveladores, provas de identidade no tocante a tais personalidades do passado e a indicação de particularidades e de fatos desconhecidos, cuja verificação seja possível fazer ulteriormente.
Convém observar que esses abusos, como tantos outros, não derivam da natureza da causa incriminada, mas da inferioridade do meio em que ela exerce sua ação. Tais abusos, frutos da ignorância e de uma falsa apreciação, hão de diminuir de importância e desaparecer com o tempo, graças a uma educação mais sólida e mais prática.
*
Uma última dificuldade ainda subsiste: é a que resulta da contradição aparente dos ensinamentos espíritas a respeito da reencarnação. Por muito tempo, nos países anglo-saxônicos, as mensagens dos Espíritos não falavam dela; muitas até a negaram e isso serviu de argumento capital para os adversários do Espiritismo.
Já, em parte, respondemos a essa objeção. Dissemos então que essa anomalia se explicava pela necessidade em que se achavam os Espíritos de contemporizar, a princípio, com preconceitos religiosos muito inveterados em certos pontos. Nos países protestantes, hostis à reencarnação, foram deixados voluntariamente na penumbra, para serem divulgados com o tempo, quando fosse julgado oportuno, vários pontos da Doutrina. Com efeito, passado esse período de silêncio, vemos as afirmações espíritas em favor das vidas sucessivas produzirem-se hoje nos países de além-mar com a mesma intensidade que nos países latinos. Houve graduação em alguns pontos do ensino; não houve contradição.
As negações derivam quase sempre de Espíritos muito pouco adiantados, para saberem e poderem ler em si mesmos e discernir o futuro que os espera. Sabemos que essas almas passam pela reencarnação sem a preverem e, chegada a hora, são imersas na vida material como num sonho anestésico.
Os preconceitos de raça e de religião, que na Terra exerceram influência considerável nesses Espíritos, continuam a exercê-la na outra vida. Enquanto a entidade elevada sabe facilmente libertar-se deles com a morte, as menos adiantadas ficam por muito tempo dominadas por eles.
A lei dos renascimentos foi, no Novo Continente, considerada, por causa dos preconceitos de cor, debaixo de aspecto muito diferente daquele porquê o foi no antigo mundo, onde velhas tradições orientais e célticas haviam depositado seu gérmen no fundo de muitas almas. Produziu logo a princípio tal choque, levantou tanta repulsão, que os Espíritos dirigentes do movimento julgaram mais prudente contemporizar.
Deixaram, primeiramente, disseminar-se a idéia em meios mais bem preparados, para, daí, ir lavrando até os centros refratários por diferentes caminhos, visíveis e ocultos, e, sob a ação simultânea dos agentes dos dois mundos, infiltrar-se neles paulatinamente, como está sucedendo no momento presente.
A educação protestante não deixa no pensamento dos crentes ortodoxos lugar algum para a noção das vidas sucessivas. No seu modo de pensar, a alma, por ocasião da morte, é julgada e fixada definitivamente ou no paraíso ou no inferno. Para os católicos existe um termo médio: é o purgatório, lugar indefinido, não circunscrito, onde a alma tem de expiar suas faltas e purificar-se por meios incertos. Essa concepção é um encaminhamento para a idéia dos renascimentos terrestres. O católico pode assim relacionar as crenças antigas com as novas, ao passo que o protestante ortodoxo se vê na necessidade de fazer tábua rasa e de edificar no seu entendimento doutrinas absolutamente diferentes das que lhe foram sugeridas por sua religião. Daí, a hostilidade que o princípio das vidas múltiplas encontrou logo de princípio nos países anglo-saxônicos adeptos do Protestantismo; daí, os preconceitos que persistem, mesmo depois da morte, numa certa categoria de Espíritos.
Vimos que, na atualidade, pouco a pouco se vai produzindo uma reação, a crença nas vidas sucessivas vai ganhando todos os dias mais algum terreno nos países protestantes, à medida que a idéia do inferno se lhes vai tornando estranha. Conta já, na Inglaterra e na América, numerosos partidários; os principais órgãos espíritas desses países adotaram-na, ou pelo menos a discutem com uma imparcialidade de bom quilate. Os testemunhos dos Espíritos em seu favor, tão raros ao princípio, multiplicam-se hoje. Damos alguns exemplos.
Em Nova Iorque foi publicada, em 1905, uma obra importante com o título The Widow's Mite, na qual se fala da reencarnação. Diz J. Colville, na Light:
“O autor, Sr. Funck, é homem muito conhecido e altamente respeitado nos centros literários americanos como o mais antigo sócio da firma comercial Funck and Wagnalls, editora do famoso Standard Dictionary, cuja autoridade é reconhecida em toda parte onde se fala inglês.
É um homem prudente, que, passo a passo e com as maiores precauções, chegou à conclusão de que a Telepatia e a comunicação com os Espíritos estão, de ora em diante, demonstradas. Tomou como princípio pesar toda aparência de prova que se apresente e, graças a isso, chegou, após vinte e cinco anos de observações conscienciosas, a editar uma obra que provocará, com certeza, em muitos espíritos, convicção mais profunda do que provocaria se ele tivesse ligado atenção menos escrupulosa às minúcias. Esse livro contém uma grande variedade de fenômenos psíquicos observados nas condições mais variadas e relatados com o maior cuidado por uma testemunha céptica a princípio, e merece lugar elevado na literatura especial.”
Na obra de que se trata, o autor expõe, primeiramente, as condições de experimentação:
“O leitor deve considerar que a médium é uma senhora de idade, sem instrução, e a quem, tendo-a encontrado já nuns quarenta círculos, tivemos todo o vagar de estudar sob o ponto de vista moral. Na presente ocasião estou absolutamente convencido de que ela não tinha nenhum cúmplice. A primeira comunicação, de natureza muito elevada, dizia respeito às leis da Natureza; deixamo-la de parte, apesar do seu interesse, e chegamos à segunda, que tratava da reencarnação. A voz do Espírito-guia do grupo, Amos, fazendo-se ouvir, disse:
– Está aqui um Espírito luminoso que hoje vos apresento; vem dar-vos esclarecimentos a respeito da reencarnação, que foi o objeto de uma de vossas perguntas; é um Espírito muito elevado, que consideramos como instrutor para nós mesmos, e vem a instâncias nossas. Estais lembrados de que as perguntas que haveis feito, em várias reuniões, não receberam resposta satisfatória; por isso recorremos a ele, que consentiu em vir. Sinto vivamente que o Prof. Hyslop esteja ausente, já que fez várias perguntas a esse respeito, em outra ocasião.
Uma voz, muito mais forte que a precedente e absolutamente diversa, toma assim a palavra:
– Meus amigos, a reencarnação é a lei do desenvolvimento do Espírito na via do seu progresso (e todos devemos progredir, lentamente, é verdade, com pausas mais ou menos prolongadas, desenvolvimento que demanda longos séculos). Vem um momento em que o Espírito torna a nascer, entrando em outra esfera mais elevada da sua existência. Não falo somente da reencarnação na Terra. Não é frequente que um Espírito elevado, que tenha vivido na Terra, torne a nascer nela. Algumas vezes, no entanto, os Espíritos são afeiçoados à Terra e aos seus atrativos, e tornam a tomar corpos humanos e a viver outra vez na Terra; mas isso não é necessário para os Espíritos elevados. Os progressos são mais rápidos no corpo espiritual e nas regiões onde nos achamos do que nas condições da vida terrena. O que acabamos de dizer é aplicável a cada uma das Esferas que sucessivamente percorremos.
Diz, depois, que Jesus desceu de uma Esfera superior para desempenhar missão junto aos homens e trazer-lhes a verdade.”
Friedrich Myers, em sua obra magistral La Personnalité Hummaine (edição inglesa) cap. X, 1.011, exprime opinião análoga:
“Nosso novo conhecimento, em Psiquismo, confirmando o pensamento antigo, confirma também, em relação ao Cristianismo, as narrativas das aparições do Cristo depois da morte e faz-nos entrever a possibilidade da reencarnação benfazeja de Espíritos que atingiram um nível mais elevado que o homem.”
Depois, na pág. 403:
“Das três hipóteses que têm por objetivo explicar o mistério das variações individuais, do aparecimento de qualidades e propriedades novas, a teoria das reminiscências de Platão parece-nos a mais verossímil, com a condição de assentar a base nos dados científicos estabelecidos em nossos dias.”
E à pag. 329:
“A doutrina da reencarnação nada encerra que seja contrário à melhor razão e aos instintos elevados do homem. Não é, decerto, fácil estabelecer uma teoria firmando a criação direta de Espíritos em fases de adiantamento tão diversas como aquelas em que tais Espíritos entram na vida terrena, com a forma de homens mortais; deve existir certa continuidade, certa forma de passado espiritual. Por enquanto, nenhuma prova possuímos em favor da reencarnação.”
Myers não conhecia as experiências recentes de que falamos no capítulo XIV; no entanto afirma novamente (pág. 407): “a evolução gradual (das almas) tem estádios numerosos, aos quais é impossível assinalar um limite”.
Mais recentemente, as Cartas do Mundo dos Espíritos, de Lord Carlingford, publicadas na Inglaterra, admitem as reencarnações como consequência necessária da lei de evolução.
A doutrina das vidas sucessivas vai-se insinuando mansamente, na atualidade, por toda parte, do outro lado da Mancha. Aí vemos um filósofo como o Professor Taggart adotá-la de preferência às outras doutrinas espiritualistas e declarar, como o fizera Hume antes dele, que “ela é a única que apresenta vistas razoáveis acerca da imortalidade”.
No último congresso da Igreja Anglicana, em Weymouth, o venerável arcediago Colley, reitor de Stockton (Warwickshire), fez uma conferência sobre a reencarnação, em sentido favorável. Esse fato indica-nos que as novas ideias abrem brecha até no seio das igrejas da Inglaterra (Light of Truth).
Enfim, em seu discurso de abertura, como presidente da Society for Psychical Research, o Rev. W. Boyd-Carpenter, bispo de Ripon, a 23 de maio de 1912, diante de seleto e distinto auditório, fez ressaltar a utilidade das pesquisas psíquicas, a fim de se obter um conhecimento mais completo do “eu” humano e precisar as condições de sua evolução. “O interesse desse discurso, dizem os Annales des Sciences Psychiques de maio de 1912, reside especialmente nisto: o ver-se aí um alto dignitário da Igreja Anglicana afirmar, como certos padres da Igreja, a preexistência da alma e aderir à teoria da evolução e das existências múltiplas.”
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